Wednesday, March 5, 2014

Bem interessante para uma ficção


Mais estranho que a ficção (Marc Forster, 2006) tem como mote a metalinguagem. São várias as manifestações desse conceito dentro da obra, configurando um espiral de metalinguagem no qual existem muitas formas dessa propriedade linguística, de maneira que uma circunspecta a outra.

Para sintetizar, o filme é o resultado do que se passa no livro sobre a vida do protagonista Harold Crick (brilhantemente vivido por Will Ferrell), bem como a descrição do processo de produção literária e fílmica. Esclarecendo, o longa é o produto final dessa miscelânea de situações metalinguísticas. E a todo instante, durante esse processo de construção de estórias (que na verdade é uma só) o código linguístico refere a si mesmo, ou seja, o filme fala do filme, a autora fala de seu livro, Harold reflete sobre sua vida: a metalinguagem é intrínseca a todas instâncias da obra.

A grande diferença desse filme para outros roteiros adaptados de livros, é que, nesse caso, as tramas do livro e do filme acontecem senão ao mesmo tempo, quase simultaneamente, dentro do mesmo tempo espaço e dispositivo comunicativo. Uma influencia a outra, uma exerce função na outra, existe relação de causa e efeito entre ambas, de forma instantânea. O final de um depende do desfecho de outro. E o fato de essas relações serem explicitadas durante o tempo fílmico é um caso típico de metalinguagem. O processo de produção da arte é explicitado. Os códigos linguísticos se auto mencionam o tempo todo.

Durante todo o filme, é evidente que existe uma história de um livro e outra do próprio filme, porém, a mistura homogênea de ambas é oficializada nos momentos finais da obra, nos quais os enredos encontram-se em tempo, em sentido e em espaço, até que personagens de ambos os meios vivem uma só trama.

Cada elemento do filme-barra-livro carrega em si um conjunto de significados emblemáticos. Para exemplificar, o sobrenome de Harold, traduzido para o português,  é torcicolo. A inferência que fiz é que o protagonista tinha  um incômodo que o impedia de viver plenamente. Outra leitura é que, sofrendo de torcicolo, Harold não pode movimentar perfeitamente a sua cabeça. Ou seja, o giro de sua cabeça é tolhido pela dor, o que o impede de olhar para outras direções; uma metáfora para a forma como ele rege a sua vida: estaticamente, como se usasse uma viseira, sem grandes aspirações.   

Outro traço ímpar do filme é apresentar uma narradora onisciente, ou seja, que não participa da trama, e, logo depois inseri-la como personagem fundamental da história. Ao colocar Eiffel como personagem, o espectador acompanha a trajetória dela em busca do final para a vida de Harold, protagonista de filme e livro.

Por fim, essa peculiaridade mais estranha do que a ficção de descobrir que tinha sido inventado por uma autora, acabou salvando a vida de Harold em dois sentidos: ele não somente realmente sobreviveu ao destino que e escritora tinha imputado a ele, como também passou a viver sua vida literalmente, humanamente, prazerosamente, ao invés de automaticamente e sem empolgações ou emoções, como antes.


Não fosse por todas essas características inóspitas e complexas, o filme ainda atrairia pelos diálogos inteligentes e um humor que vai do sofisticado pelo sarcasmo e ironia ao pastelão.